Uma leitura que desperta o interesse por um tema específico e novas descobertas. Foi exatamente uma leitura que chamou a atenção da pesquisadora Fernanda Lopes Viana, do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (PPGCult) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), para a relação entre as comunidades Ka’apor e quilombolas, na Amazônia Maranhense.
Fernanda deu início à pesquisa ainda no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e se aprofundou com novas perspectivas no mestrado, desenvolvido no PPGCult, sob a orientação do professor Arkley Marques Bandeira, culminando com a dissertação de mestrado “NOVAS CONFIGURAÇÕES TERRITORIAIS E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA AMAZÔNIA MARANHENSE: perspectivas etno-históricas acerca dos contatos entre os Ka’apor e as comunidades quilombolas”, que traz uma análise das relações entre o povo Ka’apor e as comunidades quilombolas localizadas na microrregião do Gurupi, na Amazônia Maranhense, no período entre os séculos XIX e XX, buscando entender como os contatos interculturais afetaram a vida e a cultura desses povos considerando as mudanças culturais resultantes dessas relações.
A pesquisa, que evidencia esses encontros culturais e a influência quilombola na ocupação da Amazônia, desafiando a visão tradicional que limita essa presença ao Nordeste, conquistou o Prêmio Fapema, na categoria Dissertação de Mestrado – Ciências Humanas e Sociais.
“(A pesquisa) nasceu da leitura. Eu lembro do livro do Darcy Ribeiro, “Diários Índios: Os Urubus-Ka’apor”, um texto incrível que fala sobre os Ka’apor em si e sobre o processo até eles chegarem às aldeias. Durante o processo de chegar (na aldeia), ele relata que (os Ka’apor) achou grupos quilombolas muito próximos à aldeia, e viu essa influência. […] Então, ele fala uma série de coisas que me chamam a atenção, porque até a altura, para mim, não existiam quilombolas dentro da floresta amazônica. Isso me chamou a atenção no TCC. Conversando com o Arkley, que participou da minha banca, ele disse: ‘Fernanda, é muito legal, a gente poderia explorar mais isso’. Porque essa questão também envolvia a arqueologia, que era a área dele. Eu não tinha essa noção, não só da materialidade, mas também da relação interna entre esses dois povos. Foi daí que nasceu a ideia de desenvolver essa pesquisa e mostrar sobre isso.”, contou Fernanda.
O estudo também se insere em uma proposta fomentada pelo PPGCult. “O tema dela era algo que a gente estava buscando muito no PPGCult. Nós tínhamos acabado de propor um grande projeto de um edital chamado PDPG Amazônia Legal, que era para justamente estimular projetos de pesquisa que tivessem temática relacionada com a Amazônia Maranhense. Quando a Fernanda vem com esse tema de trabalhar outras fontes de análise, não só arqueológica, ou aquela bibliográfica associada à arqueologia, nós ampliamos a visão interdisciplinar, porque ela mergulha nos dados históricos, mergulha nos dados etno-históricos, e nas etnografias, por exemplo, do próprio Darcy Ribeiro que ela coloca”, comenta o orientador da pesquisa Arkley Marques.
Durante a pesquisa, Fernanda realizou diversas análises, estabelecendo correlações entre os processos ocorridos na Amazônia maranhense e paraense, abordando as características do processo de expansão territorial dos Ka’apor, bem como, a migração dos quilombolas por diferentes espaços, desde os trajetos na África até o Estado do Maranhão, alcançando as complexidades das tensões sociais, o campesinato na Amazônia, suas resistências e lutas, que proporcionaram uma compreensão mais aprofundada das características culturais contemporâneas.

Desafios e descobertas
Um dos períodos mais devastadores da humanidade, a pandemia da covid-19 também representou o principal desafio para o desenvolvimento da pesquisa. Entretanto o que poderia limitar a investigação, revelou um novo caminho para o estudo: a pandemia impediu o trabalho de campo, mas permitiu uma imersão aprofundada em fontes documentais, revelando, por exemplo, a existência de uma mulher xamã que unia espiritualidades indígena e africana.
“Justamente o que catapultou a possibilidade de ela fazer a imersão nessas fontes foi o fato de não poder ir a campo, porque a ideia era a gente fazer uma parte de campo, mas aí que ia envolver autorizações da FUNAI, porque nós iríamos para a terra indígena. Então, quando aconteceu isso, já na ‘Qualy’, a gente conversou com os professores que acompanharam a carreira da Fernanda, acadêmica do mestrado, e disse, ‘olha, gente, eu acho que infelizmente a gente vai ter que fazer essa pesquisa documental e deixar para um outro momento a parte de campo’. E eu acho que a gente acertou porque deu para ela esse conforto de não ter essa carga de fazer campo, e deu essa possibilidade, no período da pandemia, ela fazer essa imersão”, contou Arkley.
Para Fernanda, essa imersão documental além de confirmar que, de fato, houve um encontro entre o povo indígena e o quilombola, que “eles conseguiram, mesmo dentro desse processo de encontro, ficar separados e se tornar o afroindígena, que era o objetivo do estudo, entender como se fez o processo”, proporcionou à pesquisadora a descoberta de uma figura única: uma mulher xamã, que unia espiritualidades indígena e africana.
“A gente teve, na década de 50, uma mulher xamã que misturava os dois elementos, não só a espiritualidade indígena como africana. E era algo pelo qual ela era perseguida dentro desses espaços que não era nem na aldeia nem nos quilômetros, era entre esses caminhos. Então, acho que foi o que mais me chamou atenção, é algo até que a professora da banca, professora Ana Carolina, falou que era para eu colocar mais sobre essa mulher porque era única, não ia vir escondida. Pelo relato de Darcy Ribeiro, ela não podia exercer esse encontro cultural que ela tinha dentro desse próprio espaço em que ela morava. Então, acho que de tudo foi o que mais me chamou atenção”, salientou Fernanda.
Preservação cultural e identidade maranhense
O encontro entre os povos na Amazônia Maranhense também diz muito sobre a construção da identidade maranhense e o reconhecimento da ancestralidade afroindígena no Maranhão, abrindo portas para novas investigações sobre a ocupação do interior do estado e sua relação com a diáspora africana e as populações indígenas.
Segundo Fernanda, a arqueologia e a antropologia ainda não se debruçam sobre esses encontros entre quilombolas e indígenas. Então, a descoberta de que comunidades quilombolas coexistiram e interagiram com populações indígenas desafia a visão tradicional da ocupação da Amazônia, que tende a focar exclusivamente nos povos originários ou em migrações contemporâneas, como seringueiros e ribeirinhos.
“Então, eu acho que a importância principal do estudo é exatamente dar luz a essa observação que a gente percebeu, que não tem estudos nem na arqueologia e nem na antropologia sobre os afroindígenas. Então, eu acho que o estudo abre portas para perceber. ‘Ei, tem uma galera que veio aqui, que morou aqui durante muito tempo, se conheceu, teve conflito e hoje as pessoas, os remanescentes estão lá’. O processo de ocupação do interior do Maranhão não foi só indígena, na Amazônia Maranhense, mas também quilombola, foi negro. Então, isso nasceu desse processo de fuga que essas pessoas tiveram, se reestabeleceram, fugiram, migraram, faltaram e tornaram, é uma parte da identidade do Maranhão”, pontua a pesquisadora.
Segundo o orientador, a pesquisa também traz contribuições para perceber como a Amazônia teve um processo de construção territorial diverso e complexo. “Quando a gente olha essa documentação, o que não tinha era um olhar para esse dado, as pessoas estavam tão imbuídas que, quando falam de floresta, são povos indígenas ou povos extrativistas mais recentes, mas aí o que acontece? Se a gente for pegar grandes relatos de muitos pesquisadores que nos antecederam, como a professora Mundina Araújo, do Arquivo, que tem muita documentação a respeito dessas configurações territoriais, o professor Alfredo Wagner Berno o que a gente tem para área da Amazônia, e é uma contribuição que a Fernanda dá excepcional, é que a gente não tem um único modelo de construção territorial a gente tem múltiplas territorialidades associadas a diferentes grupos étnicos”, observa Arkley.
Outro ponto fundamental da pesquisa é sua contribuição para a preservação das culturas indígenas e quilombolas, destacando como esses grupos não viveram isoladamente, mas, sim, em contato constante. A análise aponta que, já na década de 1950, havia relações estabelecidas entre essas populações, e a presença quilombola na região antecede a chegada dos indígenas Ka’apor ao Rio Gurupi, ainda no século XIX. A pesquisa reforça a importância de iluminar esses processos históricos, reconhecendo que os povos que habitam essas áreas hoje são descendentes diretos dessas interações. A identidade maranhense é, portanto, profundamente enraizada nessas trocas culturais, que devem ser analisadas e valorizadas da melhor maneira possível.
“Acho que é muito importante dar luz a isso, falar que essas pessoas passaram por esse processo, e as pessoas que estão lá hoje são descendências desse pessoal, então, é importante a gente falar sobre eles, porque, querendo ou não, como eu disse, é a identidade do Maranhão, a gente tá afincado nisso, então é importante falar sobre isso das melhores formas possíveis porque tem várias possibilidades de falar sobre isso, é muito mais complexo do que um estudo poderia trazer”, afirma Fernanda.
Na dissertação, a pesquisadora apresenta evidências que mostram o contato entre os povos, como a interação linguística entre os Ka’apor e os quilombolas. Um fato curioso revelado no estudo é que os quilombolas da região aprenderam a língua de sinais dos Ka’apor, demonstrando a profundidade das interações entre esses grupos. Além disso, elementos culturais como a música e os instrumentos – por exemplo, tambores compartilhados entre os Ka’apor e quilombolas – são indicativos da fusão cultural existente.
A pesquisa também explora a materialidade arqueológica dessas trocas, mostrando que a convivência entre esses povos gerou um intercâmbio de saberes e práticas que pode ser rastreado por meio de artefatos e técnicas de produção material.
Reconhecimento acadêmico e impacto do Prêmio
As contribuições significativas que dissertação de Fernanda trouxeram para a valorização dessas populações, reforçando a importância das ciências humanas e sociais na compreensão dessas dinâmicas, foi coroada com o Prêmio Fapema de 2024. Concedido pela FAPEMA, o Prêmio à dissertação representa também um reconhecimento ao esforço da pesquisadora.
“Pra mim, é uma honra. É a primeira vez que eu ganho uma premiação, mas, pra mim, é uma honra. Eu fui bolsista durante o mestrado, então existe uma relação muito forte com a FAPEMA, foi importante pra mim, nesse período, receber a bolsa. E ganhar uma premiação da mesma instituição é gratificante”, celebrou Fernanda
O orientador da pesquisa destacou a importância dessa visibilidade para a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e para o Programa de Pós-Graduação em Cultura (PGCult), que vem crescendo academicamente:
“A gente tem uma produção muito profícua na UFMA, não só pelo PGCult, que é o programa de que a gente faz parte, agora ela é egressa, mas a gente tem outros programas que trabalham bem. A gente tem o Maranhão ainda muito com muitas potencialidades para pesquisa em diversas áreas, então esse prêmio coroa isso, a gente traz a aluna, que é uma filha da casa, e todo mundo ganha com isso: a UFMA, porque tem visibilidade; o programa. porque tem visibilidade; para ela, por ser pesquisadora, vai ser muito importante na trajetória acadêmica eu como orientador também. E essas premiações são boas porque valorizar é sempre bom, dizer: poxa, você fez um trabalho legal, valeu a pena”.
A pesquisa abre portas para diversos novos estudos, principalmente, ao apresentar desafios metodológicos inovadores e abordagens interdisciplinares, e traz reflexões relevantes para os debates contemporâneos sobre políticas de diversidade e ações afirmativas. Além de contribuir para a valorização do conhecimento produzido nas ciências humanas e sociais, fornecendo subsídios para uma compreensão mais ampla das relações étnico-culturais na Amazônia.
Em 2024, O Prêmio Fapema condecorou 17 pesquisadores da UFMA, reconhecendo e incentivando os estudos científicos e inovadores que proporcionam benefícios para a sociedade, além de premiar os docentes que dedicam sua vida para o progresso da educação.